quinta-feira, 20 de março de 2008

Tropel





Mal o dia ressurgira da noite tempestuosa, deitada de bruços, eu ainda sentia a areia no lado direito do rosto, areia morna, áspera, os olhos ainda fechados, e jazia exangue da noite turbada. Minha embarcação, outrora tão sólida apesar dos anos, soçobrara na escuridão da tormenta.

Lembrava apenas do inferno que fora a noite passada. Estaria morta? Não o sol já ardia na pele. Estava viva com certeza. Só lembrava de como me debatera; minhas mãos sangravam no timão, lutando contra as ondas; algumas mais fortes me jogavam , uma jovem maruja, de encontro à balaustrada da embarcação. Ondas fustigantes, gélidas pela noite, furiosas depois de uma semana de ressaca marítima pareciam impiedosas. Estava realmente tudo muito calmo para um mar de agosto. Inevitável a tormenta. Por um momento eu fora jogada contra a proa do barco, a dor fulminante do lado das costelas parecia-me ter partido ao meio...arrastei-me pelo tombadilho escuro e escorregadio, minhas mãos tatearam um cabo de aço, levantei-me com dificuldade, sentia o gosto de sangue na boca misturado à água da chuva, não me importei, e mais outra onda jogou-me longe assim quem me pus em pé.

Pus-me em pé e tentei abrir a portinhola do porão. Estava emperrada. Tinha vontade de chorar, mas me contive. Tateando no escuro, tentei encontrar o arpão que deveria estar jogado por ali. Inútil encontrá-lo. Com ele, poderia abrir a portinhola. E mais outra onda gigantesca me joga agora contra a cabine da embarcação. Tonta, tento me levantar. Estava cansada. Por que lutar? Por quê? Seria fácil demais não lutar; deixar o corpo escorregar devagarinho até o mar ou esperar que o barco virasse de vez...e tudo estaria acabado! Os braços cessariam de doer; aquele frio da água me cortando o coração, não sentiria mais o sangue escorrendo...

Mas meus pensamentos se voltavam à terra firme. Eu tinha tanto a fazer ainda. Não seria uma tempestade de nada que me faria desistir de seguir minha rota.

O barco não tinha mais controle. Ele era jogado violentamente qual folha seca num redemoinho. E eu ia junto a cada movimento brusco de um lado para outro; tentava me manter segura no tombadilho, mas meus braços já não tinham mais forças; minhas mãos estavam cansadas e por demais doridas; o peito arfava e mais outra onda me jogava para longe! Sabia que meu fim estava próximo. Aquele inferno não poderia durar eternamente. Uma hora teria que acabar. Agora sentia-me incapaz de racionalizar qualquer ação de imediato. Era jogada à mercê do mar; apenas um joguete; alguém brincando de deus comigo.

E assim fora toda a noite, açoitada pelos ventos, as ondas gigantescas, o frio insuportável...uma eternidade aquela noite.

Agora estava eu ali, sentindo o cálido sol em minha pele, a roupa ainda molhada grudada no corpo, fui abrindo devagarinho os olhos, estava com medo de abri-los, mas fui abrindo, os braços pesavam doloridos e lanhados, mal podia mexê-los; as pernas chumbadas no solo, nem as sentia...finalmente arregalei apenas um olho, pois o outro ainda estava enterrado, meio encoberto...e vi que estava viva ! Sobrevivera. Virei a cabeça. Conseguira mexer o pescoço. Sinal que a coluna estava intacta. Só as pernas continuavam imóveis. Passados alguns segundos, mexo os dedos dos pés, espreguiço-os, dobro um joelho, sinto calor nas pernas, e empurro o lençol rosa de algodão macio para os pés da cama...

Viro-me de costas, e olho o teto, o céu lilás cheio de estrelas coladas ainda na semana passada.

Estou viva. Ainda!

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