quarta-feira, 30 de abril de 2008

O Tartufo

Às vezes ela fica relendo seus poemas, suas cartas, tudo aquilo que ela escrevera pra ele ao longo desses anos.

O que ela apenas vê foi que ela amou intensamente uma pessoa que não existe mais. Amou aquele rapaz meigo, carinhoso, poético, sensível, delicado que hoje nem sinal dele ficou. O que existe é apenas o negro das sombras . Sombra do passado apenas. Bronco, brusco, bizarro, apenas isso.

Decididamente, amou um fantasma por todos esses anos! Alguém que morreu e não deixou nem farpas de delicadeza, de sensualidade, de carinho, nada!

Hoje ela chora apenas o enterro desse cara. Nada restou. Nada ficou. A vida se encarregou de esfarelá-lo em todos os cantos de uma cidade, sim, de apenas uma cidade, pois que mais ele conhece além de uma ou duas cidades? Nada!

Ele está tão perto de dela, mas ao mesmo tempo, tão distante. É outra pessoa. Irreconhecível. Quando olha pra ele, tem somente a vontade de chorar. Chorar assim como quando se aproxima de um caixão e se chora por um ente amado que se foi. Ele se foi. E ela ficou. Do mesmo jeito que ele um dia lhe deixara. Nada mudou dentro dela. Ou pior, tudo muito mais se intensificou com o passar de todo esse tempo.

Ele mudou tanto que, se um dia ele tiver a oportunidade de ler isto, ele entenderá tudo do avesso. É assim, ele é o avesso do bordado. Por mais que se mostre o lado direito do bordado, ele só vê o avesso da vida.

O que ela mais lembra é da intensidade. A intensidade com que ela pensava nele, desejava ele do seu lado, e quando ela sentava nas areias longínquas e pensava nele, escrevia seu nome na areia como se aquilo fosse atraí-lo para ela como num passe de mágica! E quando ela sentava lá sob aquele coqueiro solitário, olhando o infinito no mar, e chorava pensando nele...

Só o que resta agora, é o som tristonho de um Chet Baker. É, Chet tem esse dom. Se estamos, alegres, ele nos alegra. E se estamos tristes, ele nos afunda. E nos encontramos na sua voz, no seu trompete.... até mesmo no seu suicídio.

Mas em tudo isso tem uma coisa boa: ela amou com toda a intensidade e com toda a pureza. E disso não se arrepende. Ele a enganou tantas vezes; mentiu tantas outras mil ( e ainda continua), e ela foi tão sincera, tão franca, tão ela. Nunca escondeu nada dele. E quantas ele lhe escondeu? Quantas vezes foi fraco? Mentiroso? Tartufista? Foram tantas...Que somente a uma conclusão ela chegara: ele está com ela porque não tem mais ninguém!

Se ele estivesse ali, por amor, seria muito diferente. Não seria o suporte que está sendo.

Pra ele, ela é apenas um amor chechelento.

No matter. O que mais importa agora é o que ela sempre sentiu de verdadeiro.

De novo ela quer viver. Viver! Não se entregar. Lutar. Sobreviver. Sugar cada gota de água da chuva, dar cada passo adiante, levar o braço a cada centímetro e ... sobreviver.


23/02/08 - Sábado

sexta-feira, 11 de abril de 2008

Devastação


Ele chegou depois de muitos e muitos anos, dezenas de anos, e quando a gente pensa que quando algo demora, é por que vem pra valer, ele realmente viera pra valer!

Veio devastando tudo que encontrava pela frente! Destruiu arroios, rios, vales e montanhas. Destruiu vilarejos, aldeias, amores recém-edificados, crianças recém-nascidas, animais recém-cruzados, pontes recém-edificadas, poemas recém-elaborados, ninhos recém-construídos, até as trepadeiras nada recém-cultivadas ( mas de muitos e muitos anos celebradas), admiradas, edificadas, fotografadas...

Podem roubar seus poemas, suas noites fabulosas de bem-dormir, seu sossego matutino, sua paz, suas senhas, sua marca, mas, por Deus, não roubem o seu verde! Ve de verde. Ve de vida. E a menininha quer isso. Não o Eme da morte. A morte é para depois, muito depois da vida.

De seus poemas, ele nunca mais lera. De suas crônicas, apenas a ignávia. De seu antigo amor, apenas o ignóbil.

Não sobrara nada! E nem com a melhor das boas-vontades restara algo de toda aquela devastação.

E a garotinha, ali, perdida meio que perdida, no meio de toda aquela ventania, olhava estapafúrdia, perdida mais que perdida e, entre boquiaberta e assustada, pensava, onde vim amarrar minha cabrita?!?

terça-feira, 8 de abril de 2008

Cobra Criada ( Ou O Covil )




"Eu sou cobra criada
E tenho muito veneno
Sou neto da madrugada
E afilhado do sereno
Quero respeito comigo
Que eu sou bom amigo mas brigo à toa
É só nao errar, malandragem
Que tu fica numa boa
Minha mulata não é viola
Pra vagabundo tocar
Nem tampouco é microfone
Pra amigo da madruga conversar
Eu sou cobra criada
E tenho muito veneno
Sou neto da madrugada
E afilhado do sereno
Vagabundo é igual o capim
Que nasce em qualquer lugar
Eu cheguei, estou chegando
Vim aqui pra capinar
É, mas ali moram uns malandros
Que precisam apanhar
Parece cachorro com gato
Toda hora quer brigar
Eu sou cobra criada
E tenho muito veneno
Sou neto da madrugada
E afilhado do sereno"
Do saudoso e sábio Bezerra da Silva