sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Bolo de Laranja & Café Preto




Foi assim: ela pôs a mala preta sobre a cama, abriu-a, o couro parecia velho, gasto, meio ressecado pelo tempo, e uma tristeza grande sobre seus ombros pesavam como o peso do mundo. Abriu a gaveta com as roupas tão bem ordenadas, perfumadas com mini-sabonetes, e foi tirando-as e as dispondo na mala. Poucas roupas para três dias no campo. Pegou uma lingerie de dormir preta, cheirou-a, perfumada _ era doce seu gesto _ assim como quando se prepara a mala de um nenê preste a nascer ou para uma lua-de-mel.
É. Mais parecia uma lua-de-mel. Ela ia se banhar de mel; satisfazer de doçura o seu corpo cansado, sua alma fraquejada, doída...
Não conseguira dormir à noite depois de arrumar a mala. Deitou na rede no escuro do pátio com as luzinhas faiscantes do Natal iluminando a noite. Sentia-se estranha, esquisita, assim como um tornado que está para acontecer, e o ar fica diferente do sempre.
No Sábado, ela viajou. Imaginava-se uma louca indo passar um Natal com desconhecidos, tão longe, nem tinha certeza que eles a viessem buscar como tinham combinado _ na Quebrada Funda_ em Jaquirana! E se não viessem?
Melhor nem pensar no pior!
Ela sempre fora assim! Quando uma nuvem negra passava por sua cabeça, ela espantava com seu espanador de penas! E as coisas sempre acabavam dando certo.
Vai ver que é por isso que os índios usam uma argola de penas! Dizem eles que é para espantar os espíritos (ou as nuvens negras)!
Ela foi e voltou três dias depois. Voltou diferente. Tudo estava diferente a sua volta.
O que ela encontrou lá? O que a tornara tão diferente?
Encontrou uma parte de sua vida. Nem foi tanto pela manada de búfalos da qual teve que se esconder na estrada; nem pelo sorro que vislumbrou no alto da colina; nem pelo leão encontrado pelo dono da fazenda ou pelas centenas de sapos que vinham na noite até os seus pés...
Mais precisamente fora porque já estivera ali em sonhos; já tinha visto aquelas pessoas, , o lugar, as moitas em forma de pirâmides feitas de madeira, jamais tinha visto isto em lugar algum! E ali estavam, tudo a sua frente como naquele sonho de um ano atrás. Os arrepios percorriam seu corpo e tocavam os sentimentos mais desencontrados. Já devia estar acostumada com estas ocorrências...isso ocorria desde seus 15 anos! Mas quando ela pensa que tudo acabou, que não mais vão acontecer..Bum! A surpresa!
O mais lindo de tudo foi a completa comunhão com o lugar, os animais, os cavalos, a mata, os riachos, as cascatas...e o Milênio!
Milênio com seus olhos quase humanos, que pedia por um carinho a cada dez passos. Empacava. E lá tinha ela que fazer-lhe um cafuné! Do contrário, nem pensar em andar!
Tinha esse nome porque nascera na virada do milênio. Mas seus olhos eram muito especiais! Muito humanos. Chegava a dar medo.
O filho do dono da Fazenda tinha ido buscá-la na Quebrada Funda numa F-1000 azul. Foi uma hora de viagem por estradas totalmente esburacadas e por pontes quase decadentes até chegarem à Fazenda. A cada quilômetro percorrido, vislumbrava-se uma Fazenda perdida no meio de tanto mato. Ele falara durante quase todo o tempo, dizendo o quanto era apaixonado pelo lugar e de todas as coisas que ela poderia fazer por ali: pescar, nadar, cavalgar, bla, bla, bla...Até que ele tocou no nome mágico_ Cambará. Ela olhou pra ele surpresa. Lembrou do sonho. Ele estava no sonho. Naquele sonho de um ano atrás! Achou doidera e não pensou mais no assunto. Chegando lá, as outras coincidências foram se fazendo e foi se acostumando com a antiga idéia de que ela já estivera ali. Ou que viajara no tempo. Vai saber!
Hoje, apenas uma coisa é real.
Ela morre de saudade de voltar lá, de se embrenhar no mato no lombo da égua, sentir os velhos arranhões dos pinheiros nas pernas, apear à beira de um riacho, deixar a égua matar a sede, sentar sobre um tronco e ficar escutando o silêncio e os pássaros.
Ela morre de saudade de galopar pelas colinas e sentir o vento, o sol, a vida! De tocar a manada cavalgando junto com o dono da fazenda lhe dirigindo com os cães na retaguarda.
Saudade daquele bolo caramelado de laranja, do café preto e do queijo que a estavam esperando na tarde da chegada.
Saudade de tantas coisas.

Coisas simples. Puras.

2003




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